“Não querem saber”, as barreiras invisíveis e a curiosidade

Corria um ano muito distante. Estava eu no estágio curricular de Psicologia Educacional, numa escola básica ao pé da Zona J, em Chelas.

Atribuíram-me uma turma de Currículos Alternativos, 9.º ano.
Uma turma “especial”. Daquelas que “precisa mesmo de aulas com uma psicóloga”.

O problema? Estava no meu 4.º ano de curso e nunca tinha estado com estudantes. Zero formação em gestão de grupos. Mas fui — como sempre vou — com tudo o que sou.

Chega o meio do período e sou informada:

"Está na altura da reunião de encarregados de educação"

Sorri de orelha a orelha. A minha relação com a turma era excelente. Estava ansiosa por conhecer os pais e mães daqueles miúdos incríveis que me tinham ensinado muito mais que eu a eles.

Sou também imediatamente avisada:

"Não fiques toda entusiasmada - isto é só para os papéis do Ministério, nunca ninguém vem. No máximo tens 2"

Como sempre fui a Sofia dos porquês (dizem que essa fase passa, a mim ainda não passou, quem sabe aos 80!), perguntei:

“Mas porquê que não vêm?”

A resposta intrigou-me:

"Não querem saber. Nem dos filhos, nem da escola"

Não querem saber? Dos próprios filhos? Como assim não querem saber? Pareceu-me antinatural. Um contrassenso puro.

Falei com a minha orientadora de estágio – a melhor do mundo – Professora Ana Cristina Silva – que me deu um conselho precioso:

"Diz aos miúdos que estás ansiosa por conhecer os pais e as mães deles quando entregares a convocatória da reunião"

Assim fiz. Resultado? 3 pessoas na reunião. Mais uma que o prognóstico. Bom, mas não chegou. Quis perceber. Quis investigar. Quis escutar.

Tinha tantas perguntas sem resposta. Sabia que não entendia o que se passava, mas sempre fui muito curiosa.

Pedi autorização para ligar aos encarregados que não tinham aparecido:

"Se queres perder tempo, força".

Fiz 7 chamadas. E ouvi sete histórias repletas das mesmas barreiras invisíveis:

"Não posso ir a essas coisas senão perco o emprego. Trabalho nas limpezas das 6h às 20h" (todas as reuniões da escola eram às 15h)

"Fui uma vez e a professora falou mal do Miguel à frente de toda a gente. Para isso, fico em casa."

"Não percebo nada do que a professora diz. Essas coisas da escola não são para mim"

Como é que algo tão básico nos tinha escapado, no nosso privilégio?

  • O tempo não é igual para todos.
  • A humilhação também não.
  • As palavras também não.


Decidi fazer outra reunião. Marquei para as 20:30. Fiz um convite para cada um deles levar para casa, personalizado. Escrevi que queria contar tudo sobre o maravilhoso trabalho que a turma estava a fazer. Que íamos falar das saídas profissionais (“do que fazer a seguir ao 9ºano”) com calma, que ia responder a todas as perguntas. Que podiam trazer os irmãos e irmãs pequeninas que também estava ansiosa por conhecer.

Estiveram 15 mães. Numa turma de 25 alunos. Foi uma reunião cheia de sorrisos. As outras 10? Queriam saber. Mas não tive capacidade para chegar às barreiras invisíveis delas…

Aprendi, para a vida, que por trás de um “não querem saber” existem sempre escondidas barreiras invisíveis que só se ultrapassam com curiosidade e escuta.

Como docente, quando os estudantes dizem “os professores não querem saber de nós ou das aulas, só querem fazer investigação” ouço, acolho e faço perguntas para aguçar a curiosidade.

Pergunto se sabem que formação pedagógica se tem antes de se dar a primeira aula no ensino superior, se será fácil ou difícil conjugar investigação com ensino, cargos de gestão, orientações.

Se têm ideia de quantas horas dá de aulas um docente, quanto tempo demora a prepará-las, a corrigir trabalhos, exames, vigilâncias.

Pergunto quanto tempo eles demoram a preparar uma apresentação de 20 minutos, e como seria terem de apresentar trabalhos todos os dias durante 2 horas com matérias sempre diferentes. Se podemos dar feedback a esses docentes e fazer um pouco diferente, ultrapassar alguma dessas barreiras.

Como formadora pedagógica, quando ouço “os alunos não querem saber, no meu tempo um professor dizia para ler um artigo eu corria para a biblioteca, agora só querem é saber do tik tok e passar sem fazer nenhum”. Ouço. E faço perguntas para aguçar a curiosidade.

Pergunto com doçura se nos parece lógico os estudantes não quererem saber do curso que estão a tirar, que escolheram tirar, das aulas que escolheram frequentar (mesmo que alguém tenha escolhido por eles).

Se será que os estudantes de hoje são iguais aos de há 30 anos. Se os nossos colegas na universidade eram iguais a nós, há 30 anos.

Se sabemos a carga de esforço dos nossos estudantes e quão desafiante é ser jovem nos dias de hoje. Se podemos fazer diferente, um bocadinho diferente, e ultrapassar alguma dessas barreiras.

O “não querem saber” não esconde só as barreiras invisíveis. Esconde também a magia do verdadeiro encontro entre as pessoas – sejam elas quem forem.

Fica o convite. Olhemos com a doçura da curiosidade por trás dos nossos “não querem saber”.

Procuremos as barreiras invisíveis. Prometo que estão lá. Prometo também que a magia que acontece quando ultrapassamos apenas uma delas compensa todo o caminho.

Um abraço pedagógico e um magnífico feriado.